18.08.2025

O agravamento do risco na nova Lei de Seguros

 

A boa-fé, nos contratos de seguros, é robusta e revestida de um caráter muito especial. Como ensina Silvio de Salvo Venosa “a enfática e tradicional referência à boa-fé nos contratos de seguros significa que ela é qualificada: mais do que em outra modalidade de contrato, cumpre que no seguro exista límpida boa-fé objetiva e subjetiva, aspecto que deve ser levado em conta primordialmente pelo intérprete” [1].

O agravamento do risco reside justamente no rompimento dessa boa-fé, que deve orientar o comportamento das partes em todas as fases da relação contratual entre segurado e seguradora.

O Código Civil de 1916 apregoava que o segurado deveria agir como se seguro não houvesse, abstendo-se de fazer tudo aquilo que pudesse incrementar o risco coberto.

Esse conceito, materializado no denominado princípio do absenteísmo, não foi repetido expressamente pelo Código Civil de 2002, que passou a prever em seu artigo 768 que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”, superando, assim, a resolução das controvérsias apenas com base em juízo de equidade, como previa o artigo 1.456 do diploma anterior.

Desde então, o agravamento do risco requer prova de que a conduta do segurado foi intencional, razão pela qual ela não se presume e, havendo intenção em agravar o risco, a perda da garantia é a consequência, uma verdadeira sanção civil que penaliza o segurado infrator.

 

Novos critérios da Lei 15.040/2024

O Marco Legal dos Seguros inovou e trouxe novos critérios relacionados à agravação do risco.

Segundo dispõe o artigo 13 da Lei 15.040/2024: “Sob pena de perder a garantia, o segurado não deve agravar intencionalmente e de forma relevante o risco objeto do contrato de seguro”.

Isto é, além da intencionalidade, agora o agravamento estará caracterizado quando também for relevante.

O §1º do referido artigo 13, por sua vez, esclarece que “será relevante o agravamento que conduza ao aumento significativo e continuado da probabilidade de realização do risco descrito no questionário de avaliação de risco referido no artigo 44 desta Lei ou da severidade dos efeitos de tal realização”.

Com base na terminologia, extrai-se que o termo “relevante” conduz a algo que tenha importância e, nesse sentido, possa afetar o equilíbrio contratual entre as partes. Já o “significativo” revela expressividade e impacto, a tornar a causa da perda da garantia justa. Por sua vez, “continuado” especifica que o evento não pode ser isolado ou eventual, a demonstrar a inequívoca intenção de violar os deveres contratuais pelo segurado.

Tratam-se, claramente, de conceitos jurídicos abertos e que exigirão interpretação cuidadosa e análise casuística à luz das provas do caso concreto.

Aplicação prática aos seguros do transportador rodoviário

Para exemplificar esse novo ambiente normativo, tomemos como referência o agravamento do risco relacionado aos seguros de responsabilidade civil do transportador rodoviário de cargas, de contratação obrigatória, previstos no artigo 13 da Lei 11.442/2007.

Destaca-se, inclusive, nesse contexto, que a nova Lei de Seguros, em seu artigo, 98 passou a dispor que “o seguro de responsabilidade civil garante o interesse do segurado contra efeitos da imputação de sua responsabilidade e do seu reconhecimento, assim como os dos terceiros prejudicados à indenização.”

Os referidos seguros do transportador asseguram, assim, não apenas os interesses legítimos do próprio segurado, como também os dos terceiros por ele afetados. O reconhecimento do agravamento intencional do risco com a consequente perda da garantia, a contrario senso, desfavorece a ambos.

É muito comum, sobretudo no seguro de RCTR-C, e possivelmente tal discussão igualmente recairá no seguro de RC-V, a discussão sobre a perda da garantia por agravamento intencional do risco por excesso de velocidade. O referido seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário de cargas possui cobertura indenizatória para perdas e danos ocasionados aos bens e mercadorias de terceiros, em razão dos riscos de colisão, capotagem, tombamento, abalroamento, entre outros, que ocorram durante o transporte.

Em apertada síntese, o que se debate nos tribunais é a situação em que o sinistro ocorre em determinado trecho da rodovia cuja sinalização indicava uma velocidade máxima permitida, enquanto a praticada pelo condutor do veículo transportador da carga foi outra, superior.

Da análise jurisprudencial, observa-se que há uma acentuada divergência de entendimento.

De um lado, tem-se decidido que o excesso de velocidade caracteriza agravamento do risco, ainda que sem evidenciar necessariamente a prova do nexo causal, admitindo a presunção de veracidade dos elementos dos autos como suficientes para excluir a garantia, senão veja-se [2]:

“AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. TOMBAMENTO DE CAMINHÃO NA PISTA. EXCESSO DE VELOCIDADE. HIPÓTESE DE NEGATIVA DE COBERTURA. (…) o disco do tacógrafo indicou que o veículo transitava a aproximadamente 70km/h quando tombou – sendo que o limite de velocidade para via era de apenas 60km/h (…) o laudo do policial rodoviário federal responsável pelo atendimento da ocorrência foi expresso ao mencionar que o acidente ocorreu em virtude do automóvel transitar com velocidade incompatível com a rodovia federal, relato que goza da relativa presunção de veracidade e de legitimidade.” (TJ-SC. Processo 5024941.26.2024.0039. 2ª Câmara de Direito Civil, rel. des. Rosane Portella Wolff. jul. 31/7/2025)

 

Por outro lado, há decisões que consideram como uma exigência a prova efetiva do agravamento intencional do risco pelo segurado, não bastando o excesso de velocidade, ainda que configure infração administrativa pelas disposições do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), conforme se lê abaixo [3]:

“AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA POR TRANSPORTADORA VISANDO AO RECEBIMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA REFERENTE A TOMBAMENTO DE CAMINHÃO QUE ACARRETOU PERDA TOTAL DA CARGA DE FRUTAS. A SEGURADORA RECUSOU A COBERTURA, ALEGANDO EXCESSO DE VELOCIDADE COMO CAUSA DO ACIDENTE. NO CASO, NÃO SE DEMONSTROU QUE A VELOCIDADE SUPERIOR AO LIMITE LEGAL FOI A CAUSA EXCLUSIVA DO ACIDENTE. NÃO HÁ NOS AUTOS PROVA DE CONDUTA DOLOSA OU DE AGRAVAMENTO INTENCIONAL DO RISCO POR PARTE DO CONDUTOR OU DA SEGURADA, CIRCUNSTÂNCIA QUE MANTÉM A OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. RECURSO PROVIDO” (TJ-RS. AC Nº 50169187020218210010, 5ª CC. Rel. Giovana Farenzena. j. 24/6/2025).

O renomado jurista Ernesto Tzirulnik, analisando o agravamento intencional do risco sob a perspectiva do Código de Civil de 2002, alertava que:

“(…) o uso desmedido da resolução por agravamento, assim, arrisca retirar do seguro a sua principal funcionalidade econômica e social: tranquilizar o segurado e beneficiários quanto à existência de proteção diante dos riscos do tipo garantido, propiciando-lhes o exercício normal de suas atividades, sejam pessoais, profissionais ou empresariais, e liberar-lhes os meios e capitais que haveriam de ser reservados para o seu enfrentamento” [4].

 

Talvez por situações como essas, a partir dos novos critérios trazidos pela Lei 15.040/2024, o entendimento jurisprudencial prevalecente poderá, e certamente será, revisitado, afinal além da intencionalidade, será necessário demostrar a relevância da conduta intencional do segurado a agravar o risco de maneira significativa e continuada.

Aliás, para esse tipo de situação específica relacionada aos seguros de transporte, o artigo 9º, § 4º, da própria nova Lei dos Seguros, especifica que “nos seguros de transporte de bens e de responsabilidade civil pelos danos relacionados a essa atividade, a garantia começa quando as mercadorias são de fato recebidas pelo transportador e cessa com a efetiva entrega ao destinatário”.

Nesse sentido, se garantia objeto do seguro está, por força de lei, presente durante todo o transcurso da viagem, e se agora o agravamento intencional do risco deve ser também relevante, significativo e continuado, parece, salvo melhor juízo, que para caracterizá-lo sob a alegação de excesso de velocidade será necessário observar toda a viagem até o momento do sinistro, a fim de revelar se a conduta do segurado foi realmente transgressora da boa-fé e dos deveres contratuais estabelecidos nos contratos de seguros de transporte.

 

Desafios probatórios e interpretação judicial

A análise no caso concreto dar-se-á, possivelmente, com base nos mesmos elementos de prova atualmente disponíveis: o disco do tacógrafo, o relatório de rastreamento ou de monitoramento do veículo, provas testemunhais, o próprio depoimento do motorista, boletim de ocorrência, entre outros.

A isso se somarão outras circunstâncias, como as condições climáticas (chuva, neblina ou serração), as condições da própria via, as condições do condutor (como embriaguez ou irregularidade no período de descanso legal), as medidas de gestão de riscos regularmente empregadas nas operações do transportador, tudo visando a demonstrar o contexto integral da viagem e não mais somente o do exato trecho onde ocorreu o sinistro, de forma a deixar claro e inequívoco se houve o incremento do risco pela conduta intencional, relevante, significativa e continuada do segurado.

 

Conclusão

O disposto pelo novo artigo 13 da Lei 15.040/2024 é, portanto, inovador e relevante e certamente será objeto de muito estudo.

No caso específico dos seguros de responsabilidade civil relacionados ao transporte rodoviário de cargas, seguros estes com nítida função social, nos termos do artigo 125 do Marco Legal de Seguros, a mudança tende a propiciar uma melhor reflexão nos casos concretos, protegendo de forma mais efetiva e equilibrada segurados e terceiros prejudicados, sem perder de vista a função essencial do contrato de seguro como fomento da economia.

 

[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. 7ª.ed. São Paulo: Atlas, 2007.p.339.

[2] Em igual sentido: TJ-RS. AC Nº 51021239420218210001, 6ª CC. Rel. Gelson Rolim Stocker. j. 24/09/2024; TJ-SP; Apelação n.v1022334-02.2022.8.26.0564; 34ª Câmara de Direito Privado. Rel. Rômolo Russo. j. 09/10/2023; TJMG.  AC 1.0000.24.357993-5/001. 20ª CC. Rel. Luiz Gonzaga Silveira Soares, j. 05/02/2025, e TJPR. AC nº 0008726-79.2023.8.16.0019. 8ª CC. Rel. Des. Subst. Carlos Henrique Lichenski Klein. j.27.06.2025.

[3] Da mesma forma: CONTRATO DE SEGURO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE CARGA. TOMBAMENTO DO VEÍCULO TRANSPORTADOR. AGRAVAMENTO INTENCIONAL DO RISCO NÃO CONFIGURADO. EXCESSO DE VELOCIDADE QUE, AINDA QUE COMPROVADO, NÃO REVELA DOLO OU CULPA GRAVE. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. FINALIDADE ESSENCIAL DO CONTRATO DE SEGURO CONSISTENTE NA COBERTURA DE RISCOS PREVIAMENTE DEFINIDOS. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. (TJSC. AC n. 5002327-77.2021.8.24.0218. Rel. Denise Volpato, 3ª Câmara de Direito Civil. j. 17/06/2025). Ainda, confira-se: TJ-PR.  9ª CC.  AC 0017034-18.2020.8.16.0017. Rel: Renata Estorilho Baganha. j. 21.03.2024).

[4] TZIRULNIK, Ernesto. Reflexões sobre o agravamento do risco nos seguros de danos. Revista Jurídica de Seguros. n. 13. Rio de Janeiro: CNseg, novembro de 2020. p.16.

Fonte:

CONJUR - Rosa Malena Gehlen Peixoto de Oliveira
DIREITO EMPRESARIAL - KRAS BORGES E DUARTE ADVOGADOS - KRAS BORGES & DUARTE ADVOGADOS


Notícia Anterior | Próxima Notícia
Chamar no Whatsapp